a Mário Soares
A insistência na reescrita<br>da história
Os elogios fúnebres a Mário Soares por parte de banqueiros e patrões, membros de partidos de direita e políticos com responsabilidades na NATO, são reveladores do papel precursor do fundador do PS na contra-revolução e no combate às conquistas de Abril. O propósito de rescrita da história presente nestes dias justifica que se ponha mais alguns pontos nos is.
A política de direita iniciou-se em 1976 com o I Governo Constitucional do PS/Mário Soares
«Pai da democracia» foi, porventura, o epíteto mais vezes utilizado na generalidade dos órgãos de comunicação social por articulistas e comentadores, responsáveis dos partidos da política de direita e convidados internacionais para caracterizar o percurso de Mário Soares, por ocasião do seu falecimento. Vindo de quem veio, é por demais evidente que, ao dizê-lo, não estavam a referir-se à sua oposição à ditadura fascista de Salazar e Caetano – da qual muitos deles beneficiaram e defenderam até ao último instante – mas na sua acção permanente e destacada para travar e inverter o rumo de afirmação de liberdade, emancipação social e independência nacional da Revolução de Abril. O mesmo que, em palavras, Mário Soares jurava então defender.
Esta divergência entre as palavras e os actos e a capacidade que sempre revelou de esconder as suas intenções por detrás de altissonantes declarações foram, efectivamente, marcas permanentes e indeléveis da sua actividade política, sobretudo após o 25 de Abril. No ensaio de Álvaro Cunhal «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril – a contra-revolução confessa-se», em que se revela muitos momentos em que tal sucedeu, recorda-se que, se ao longo das últimas décadas Mário Soares afirmou repetidas vezes que sempre se bateu pela instauração em Portugal de uma «democracia ocidental», o que dizia nos últimos anos do fascismo e durante o processo revolucionário era algo bem diferente.
Vejamos apenas dois reveladores exemplos: na sua Declaração de Princípios, a Acção Socialista Portuguesa (ASP), núcleo do que seria mais tarde o PS, consagrava como objectivo a «instauração em Portugal de uma democracia socialista» e de uma «sociedade sem classes». Em Dezembro de 1974, no I Congresso do PS (do qual Mário Soares era secretário-geral), pugnava-se pelo combate ao «sistema capitalista» e à «dominação burguesa», pelo que o PS lutava pela sua «total destruição»: um «plano escalonado de nacionalizações (…) retirando aos grandes grupos monopolistas o poder económico e político» e uma reforma agrária que retirasse «a terra ao latifúndio» eram alguns aspectos de que se revestiria o «socialismo» apregoado pela direcção do PS e por Mário Soares.
Fulcro da contra-revolução
E foi assim, apregoando a defesa do socialismo, que Mário Soares e a direcção do PS agiram no processo revolucionário precisamente em sentido oposto, procurando travar as mais avançadas conquistas de Abril e, dessa forma, impedir as transformações políticas, económicas, sociais e culturais da Revolução Portuguesa e abrir caminho à restauração do capitalismo monopolista.
Para tal, houve que pôr freio à dinâmica revolucionária e limitar a acção e intervenção do seu motor, a Aliança Povo-MFA, apostando na divisão do MFA e atacando o PCP, o movimento operário e sindical e o movimento popular – que Mário Soares elegeu como seus adversários principais: as provocações no 1.º de Maio de 1975 (reconhecidas pelo próprio Soares), as tentativas de divisão sindical, a participação em golpes contra-revolucionários, a permanente oposição ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves, a ligação próxima com o general Spínola e o apoio constante do embaixador norte-americano em Portugal, Frank Carlucci, foram recursos de Mário Soares e da direcção do PS para travar o avanço da revolução. Este posicionamento mereceu-lhe o apoio dos sectores mais reaccionários e retrógrados da sociedade portuguesa (patentes, por exemplo, na célebre «manifestação da Fonte Luminosa», de Julho de 1975)...
Mas se os constantes ziguezagues e o permanente desacerto entre palavras e actos foram marcas da actuação de Mário Soares e da direcção do PS na sua tentativa de travar o avanço da Revolução, foi com Soares como primeiro-ministro que, em meados de 1976, se iniciou verdadeiramente o processo contra-revolucionário.
O socialismo na gaveta
Os 35 por cento alcançados nas legislativas de Abril de 1976 não permitiam ao PS constituir sozinho um governo maioritário. O resultado, aliás, não só ficou muito longe do que ao direcção do PS esperava atingir como representou uma quebra de 260 mil votos relativamente às eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas precisamente um ano antes; o PSD perdeu cerca de 200 mil votos e o PCP aumentou em votação e em expressão eleitoral: juntos, PS e PCP tinham mais meio milhão de votos do que PSD e CDS e mais 32 lugares na Assembleia.
Ao invés de dar expressão à maioria que se verificava na Assembleia da República, a direcção do PS optou por formar governo «sozinho», mas na verdade em aliança com PSD e CDS. Como sublinhou o PCP no seu VIII Congresso, realizado no final de 1976, o primeiro governo constitucional, chefiado por Mário Soares, era um «governo aliado de facto à direita, fazendo-lhe concessões e contrariando assim o sentido da votação nas eleições (…), que derrotaram a direita reaccionária e deram maioria a comunistas e socialistas». Não terá sido por acaso que o dirigente do CDS Freitas do Amaral tenha reclamado, em Julho desse ano, «direitos de autor» por algumas das medidas inscritas no programa do governo do PS.
A Lei de Delimitação de Sectores, antecâmara das privatizações, a Lei Barreto, contra a Reforma Agrária, e a criação dos contratos a prazo foram medidas do primeiro governo constitucional que deixaram bem clara a sua marca de classe, ao serviço da restauração capitalista e latifundiária. A política dos restantes governos que Mário Soares chefiou (o II, com o CDS, e o IX, com o PSD), o recurso por duas vezes à ingerência do Fundo Monetário Internacional e a adesão do País à então Comunidade Económica Europeia – a mesma que nas vésperas das primeiras eleições legislativas garantia ser negativa para a economia e a soberania nacionais – confirmaram e levaram mais longe a opção contra a revolução e a democracia.
O socialismo, esse, foi definitiva e inequivocamente para a gaveta.
Vender o País a retalho
Para além da sua actividade enquanto governante, a restante biografia política de Mário Soares revela bem a natureza das suas reais opções, como já vimos bem diferentes daquelas que eram as suas palavras: em 1980, procura garantir o apoio da direcção do PS à candidatura presidencial de Soares Carneiro, sustentado pelos partidos da AD (PSD, CDS e PPM), contra Ramalho Eanes, cujo insucesso o levou a suspender temporariamente os cargos que detinha no partido; dois anos depois, vota favoravelmente a revisão da Constituição, a mesma que retirou do texto, entre outras importantes matérias, o objectivo de «transição para o socialismo».
Também os seus mandatos como Presidente da República (1986-1996) confirmaram aquelas que eram as suas opções fundamentais ao serviço da restauração capitalista. Naquela que foi, também, a década de Cavaco Silva – marcada pelas privatizações e pela revisão constitucional que, em 1989, atacou fortemente a democracia económica –, Mário Soares não só sustentou essa política como foi participante activo na entrega a grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros de alavancas fundamentais da economia nacional.
A esta luz, ficam mais evidentes as razões dos elogios fúnebres de figuras como o antigo deputado à Assembleia Nacional, fundador do PPD e patrão dos media, Francisco Pinto Balsemão, do fundador do CDS Diogo Freitas do Amaral ou do banqueiro Ricardo Espírito Santo Salgado, que beneficiou da intervenção directa de Mário Soares para se apoderar do Banco Espírito Santo.
O resto da história é sobejamente conhecida: em consequência da política de direita inaugurada pelo I Governo Constitucional e desde então prosseguida por PS, PSD e CDS, o País perdeu alavancas económicas fundamentais e agravou a sua submissão face ao grande capital e à União Europeia.
O «apoio» do PCP
A 2 de Fevereiro de 1986, o PCP realizou o seu XI Congresso (Extraordinário) para decidir o sentido de voto na segunda volta das eleições presidenciais, à qual passaram os «dois candidatos da direita»: Mário Soares e Freitas do Amaral.
O Partido, que apoiara Salgado Zenha na primeira volta, convocou, preparou e realizou em apenas cinco dias este Congresso, do qual saiu a decisão de tudo fazer para derrotar o fundador do CDS, que naquele momento concreto era o candidato que reunia o apoio das forças mais revanchistas e reaccionárias do País. Como se vincou nesse congresso, o voto em Soares, o único que nessa situação garantiria o almejado resultado, não significou um apoio a este candidato nem à sua política.